Focada na crise climática, Bienal de Arquitetura de SP tem professor cearense na curadoria

Focada na crise climática, Bienal de Arquitetura de SP tem professor cearense na curadoria

Pela primeira vez com curadores de fora do eixo Sudeste, 14ª BIAsp reúne soluções para lidar com extremos climáticos. Arquiteto cearense Clevio Rabelo, professor da UFC, integra o grupo e destaca: "O sertanejo lida com calor, seca e desigualdade há pelo menos 200 anos. Temos muito a ensinar"

A 14ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (BIAsp), um dos eventos mais importantes do campo no Brasil e no mundo, será marcada não apenas pelo retorno à sua sede histórica, a Oca do Parque Ibirapuera, mas também pela presença inédita de profissionais de fora do eixo Sudeste na curadoria. Entre eles está o arquiteto e urbanista cearense Clevio Rabelo, natural de Quixadá, professor do departamento de arquitetura, urbanismo e design da Universidade Federal do Ceará (Daud/UFC).

Doutor em História da Arquitetura pela FAUUSP, Clevio integra o comitê curatorial da 14ª BIAsp ao lado de Renato Anelli (São Paulo), Marcos Cereto (Amazonas), Marcella Arruda (Rio de Janeiro), Karina Silva (São Paulo) e Jerá Guarani (São Paulo).

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O grupo é responsável por propor as diretrizes da edição, que acontece entre os dias 18 de setembro e 19 de outubro e busca discutir o papel da arquitetura para lidar com um dos maiores desafios do nosso tempo: a emergência climática.

“Fiquei muito feliz e agradecido pelo convite, mas o que me motivou foi a chance de representar a Escola de Arquitetura e a UFC. Ser nordestino nesse espaço é importante, pois há uma produção potente acontecendo aqui e o Sudeste está começando a prestar mais atenção nisso”, diz o professor.

O curador explica que a Bienal propõe uma reflexão radical diante de um contexto marcado por eventos climáticos extremos e pela iminência do “ponto de não retorno” para a vida humana: como a arquitetura e o urbanismo podem ajudar a reverter esse cenário?

A resposta pode estar tanto nas inovações tecnológicas quanto nos saberes tradicionais, muitas vezes preservados nas periferias urbanas, aldeias e quilombos.

“O sertanejo já lida com calor, seca e desigualdade há pelo menos 200 anos. Ou seja: não só sofre com isso, mas também tem muito a ensinar”, afirma Clévio.

Ele destaca a sabedoria tradicional do semiárido como referência global para soluções arquitetônicas que respeitam o meio ambiente: “O povo daqui sabe ler os sinais da terra: conhece cada planta, o tempo das chuvas, o sol que muda de lugar, o jeito dos bichos. Eles vivem sem desperdício — quase não geram lixo, usam tudo o que têm e constroem com o que a terra oferece: barro, angico, sabedoria”.

“Já reparou como as casas do sertão são flexíveis? Simples, mas engenhosas: fresquinhas de dia, quentinhas à noite. E, sim, faz frio no sertão. Quem já ou pelos Inhamuns sabe bem disso”, continua o professor.

Para orientar essa busca por soluções, a curadoria da 14ª BIAsp estruturou cinco eixos temáticos: 1 - preservar as florestas e reflorestar as cidades; 2 - conviver com as águas; 3 - reformar mais e construir verde; 4 - circular e ar juntos com energias renováveis; e 5 - garantir a justiça climática e a habitação social.

Um dos temas centrais da Bienal, “conviver com as águas”, propõe abandonar a lógica de enfrentamento aos ciclos naturais e adotar estratégias colaborativas, como já ocorre em países que implementam soluções baseadas na natureza.

“Durante as enchentes no Rio Grande do Sul, um estudo da UFRGS revelou que as áreas mais atingidas em Porto Alegre eram justamente os locais onde a cidade havia aterrado rios e lagos no século XX. Esse fato nos ensina que não podemos continuar brigando com a água, ocupando seus espaços naturais”, alerta Clevio.

Como exemplos ele cita os parques alagáveis da Holanda, os “projetos esponja” da China e iniciativas locais como o Parque Rachel de Queiroz, em Fortaleza, e os parques naturais de Sobral. “Essas iniciativas mostram como podemos conviver melhor com a natureza em vez de tentar dominá-la.”

A ampliação do semiárido brasileiro para áreas classificadas como deserto é outro desafio que demanda novas abordagens arquitetônicas.

“Devemos observar regiões com clima e condições econômicas parecidas com as nossas. Está na hora de parar de copiar apenas a arquitetura dos países ricos; o Sul Global tem ótimos exemplos para nos inspirar. Países como Paraguai, Equador, Vietnã, Bangladesh e Índia estão desenvolvendo projetos arquitetônicos muito bons”, defende o urbanista.

E acrescenta que “na última Bienal de Veneza, o Pavilhão do Bahrein foi premiado justamente por mostrar soluções tradicionais daquela região. Esse será um dos temas centrais dos debates da BIAsp”. “A arquitetura que precisamos já está sendo feita, só precisamos olhar para os lugares certos.”

Produção cearense ganha destaque

Além da sua participação na curadoria, o Ceará terá presença de destaque na Bienal com a confirmação de dois escritórios locais: Lins Arquitetos e Rede Arquitetos.

“Ambos são exemplos de excelência e de compromisso com uma arquitetura que pensa o contexto social e ambiental”, destaca Clevio. O Lins Arquitetos, sediado no Cariri, recebeu em 2024 o prêmio de Obra do Ano do ArchDaily Brasil pelo Hospital Veterinário, além de uma indicação ao Mies Crown Hall Americas Prize, um dos maiores reconhecimentos internacionais.

Já o Rede Arquitetos, de Fortaleza, acumula prêmios e publicações nacionais, com um trabalho que alia conceito, impacto social e pesquisa de materiais. “Enquanto o mercado só pensa em obras gigantes, eles transformam o cotidiano com inteligência”, resume Clevio.

Entre os casos cearenses que o arquiteto levará para a Bienal está o projeto do novo campus do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em Fortaleza, que ocupará parte da antiga base aérea. “É um projeto que mistura construções novas com a reforma de prédios antigos. O local é enorme e pode virar mais uma área verde na Cidade, com edifícios projetados para o nosso clima. Reflorestar e renovar prédios existentes é uma das formas mais inteligentes de fazer arquitetura. Precisamos incentivar isso.”

Fortaleza: entre preservação e especulação, um laboratório vivo de tensões urbanas

Na Capital, o professor Clevio Rabelo coordena projetos de extensão como a Casa-Embrião, na Ocupação Carlos Marighella, no bairro Mondubim, e vê nas práticas comunitárias uma arquitetura potente nascida da resistência. “As melhores arquiteturas são aquelas que ouvem as pessoas”, pontua.

“Quem vive no lugar conhece melhor do que ninguém as necessidades e os desafios daquele território. O arquiteto traz o conhecimento técnico, mas não tem todas as respostas. A verdadeira arquitetura se constrói no cotidiano, com a participação da comunidade. O grande desafio é não desistir dessa luta, porque quem mora em uma casa que pode ser levada pela enchente ou que vive com goteiras não pode esperar — precisa de soluções urgentes.”

Esse debate se conecta com outro tema caro à Bienal: o reuso adaptativo e a necessidade de “reformar mais e construir verde”.

Nesse sentido, o arquiteto e urbanista critica a iminente demolição de prédios icônicos em Fortaleza como o Seara Praia Hotel, na avenida Beira Mar, que encerrou atividades e deverá ser demolido.

“É um grande erro demolir esse prédio. Pense em toda a energia gasta na demolição, no transporte do entulho e no descarte. Ali tem materiais de qualidade que podem ser mantidos, outros reaproveitados. Só a estrutura de concreto representa até 65% do custo de uma construção. Que desperdício jogar tudo isso fora”, lamenta.

Na opinião de Clevio, “um bom projeto arquitetônico poderia transformá-lo na moradia que quisessem, até mudando sua fachada se fosse o caso. É chocante que ninguém tenha questionado essa decisão absurda.”

Por fim, Clévio reflete sobre o legado que espera construir com a Bienal e sobre o papel da universidade pública na formação de profissionais preparados para eventos climáticos extremos: “‘Eu não posso mudar o mundo, mas eu balanço’. A Bienal não promete revoluções instantâneas, mas cultiva ideias que transformam”.

“Veja só: um prefeito de uma metrópole que adota práticas sustentáveis após sua visita; um estudante que, encantado pelas construções em terra do Azul Pitanga (outro escritório do Cariri), abraça essa técnica; arquitetas que ressignificam saberes tradicionais, como o uso indígena da madeira. Cada caso, uma mudança real.”

Como educador, o arquiteto Clevio Rabelo testemunha o poder da Bienal em expandir horizontes. “Que é o mesmo papel da universidade pública. Aqui, arquitetos e comunidades apresentam soluções criativas que melhoram desde nossas casas até nossas cidades. Num momento em que o pessimismo parece dominar, a Bienal nos lembra: toda grande mudança começa com pequenas ações compartilhadas. E é assim, juntos, que construímos um futuro melhor — uma ideia de cada vez.”

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