Memórias de outras sangrias: relembre as vezes que o açude Orós sangrou
Após 14 anos desde a última sangria, o "Grande Guerreiro Açude Orós" voltou a galgar; relembre as outras vezes que o açude verteu
Entre mergulhos profundos e pescarias familiares, a sangria do açude Orós evoca esperança nos corações cearenses. A euforia pelas águas que vertem no município homônimo, localizado a pouco mais de 342 km de Fortaleza, voltou a ser compartilhada.
Por volta das 22h30min de 26 de abril, após 14 anos desde a última sangria, em 2011, o “Grande Guerreiro Açude Orós” voltou a galgar.
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A infância para os moradores da comunidade da Vila do Dnocs, território notável pela proximidade ao vertedouro do açude, costuma ser saudosista. Hoje, aos 48 anos, o comunicador Josemberg Vieira rememora e registra diariamente o avançar das águas no reservatório.
O tempo levou datas, mas as lembranças dos banhos nas águas do Orós e das pescarias junto ao pai, nas vizinhanças do Poço da Velha, não foram lavadas. “Isso ficou marcado na minha memória. Por isso, hoje eu tanto me emociono ao ver o açude Orós verter novamente, porque me remete a um ado que a gente tem registrado no coração até hoje”, conta.
Determinado a mostrar ao mundo as belezas do Orós, Josemberg conta que a ideia de registrar o dia-a-dia do açude surgiu quando se tornou radialista. “Eu conversava muito com os oroenses que moram pelo Brasil afora. Eles, quando ligavam para o rádio, contavam a saudade que tinham do açude, do povo, daquele contato diário ali. Aí Deus colocou na minha mente essa missão: ‘Olha, vamos mostrar para esse povo, vamos matar a saudade’".
Foi então que, há 15 anos, veio a câmera. As gravações, confessa, começaram tímidas. Com a chegada dos celulares, os registros se tornaram mais frequentes, até que os relatos dos ribeirinhos começaram a complementar a cobertura.
Em 2011, conseguiu acompanhar a última sangria do Orós da década. Sua primeira filmada ao público. O momento também foi marcante por ter conseguido levar a esposa e os filhos para acompanhar o evento. Hoje, a pioneira TV Oásis ajuda os oroenses a matar as saudades do “Grande Guerreiro” e seu derrame de esperança.
Este ano, Josemberg conta que foi o primeiro a chegar no açude. Estava na parte de cima do vertedouro quando as primeiras gotas d’água começaram a descer pelos “dentes da piscina do sangradouro”. Naquele dia, não foram só as águas do Orós que se derramaram.
“Me bateu uma emoção muito forte. Fui a primeira pessoa a chegar lá, e não tive como conter as lágrimas, me emocionei mesmo, lembrando toda essa história, toda essa trajetória, todos os depoimentos que eu ouvi nesse tempo que a gente tá fazendo essa cobertura. Deixei a emoção falar mais alto”, revela.
Para ele, a emoção de vivenciar a sangria do Orós beira o indescritível. “Só sabe quem é da cidade. Só sabe quem é oroense, o quão isso é importante. Muita gente que me acompanha, eles não entendem muito o porquê dessa euforia, o porquê dessa ansiedade; mas só o nordestino que sofre e já sofreu tanto com a falta da água, sabe o quão importante é um momento como esse”, exalta.
Memórias de outras sangrias
No dia 15 de março de 1978, a manchete d’O POVO noticiava a primeira das 14 sangrias do açude Orós desde sua inauguração, datada de 1961, conforme levantamento da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh).
Além dessas, há a sinalização de outras possíveis duas sangrias: 1964 e 1974. O POVO procurou o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca para confirmar a informação, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
A obra, iniciada ainda durante o governo de Epitácio Pessoa (1919-1922), foi interrompida e só retornou durante o mandato de Juscelino Kubitschek (1956-1961). O açude, oficialmente batizado de Juscelino Kubitschek de Oliveira, homenageia o ex-presidente.
Anos antes, em 1960, um cenário pluviométrico que superou as previsões resultou no rompimento de uma parte da barragem, ainda em obras. O episódio impactou diretamente cerca de 170 mil pessoas, o equivalente a 60% da população, e várias cidades da região jaguaribana ficaram alagadas.
Naquela quarta-feira de 1978, a manchete dizia: “Muita chuva e Orós e Araras estão sangrando”. Hoje aos 78 anos, o agricultor aposentado Sebastião Alves de Santiago relembra que, à época, intensas precipitações na região chegaram a causar medo na população, como aconteceu em 1985.
“O povo tinha muito medo de acontecer de novo [o rompimento]. Era um assombro medonho (...) Quando eu fui em 1986 para Orós, um rapaz que trabalhava lá, quando eu tava perguntando, querendo informação, o cara disse que o Orós tinha sangrado com 14 metros, se não me engano; só que não poderia ser divulgado, porque poderia assombrar o povo”, conta.
Sua lembrança mais marcante no açude data de 1986. Naquele ano, o agricultor embarcou em um pau-de-arara a convite de uma amiga. O grupo de viajantes era grande e ansiava acompanhar a sangria do Orós.
A primeira parada foi a parede do sangradouro, próximo a escada. De lá, conseguiu assistir a queda d’água. “É muito bonita a água caindo e aquele véu de água branca”, relembra. Aproveitou a viagem para mergulhar e também para pescar. “Deu pra curtir”, avalia. Para Sebastião, o açude Orós simboliza fartura.
As visitas ao reservatório se tornaram grandes e memoráveis eventos, ajudando a movimentar a economia na região. Nascido e criado no município de Orós, o fotógrafo Anderson Oliveira, 29, também visitou o açude este ano. Desde quando o reservatório começou a encher, por volta do dia 8 de fevereiro, ou a registrar imagens do fenômeno.
Em 2009, teve a oportunidade de ver a sangria do Orós e se encantou de vez. No último sábado, 26, levantou-se cedo e, às 5 horas, já estava no açude. “Foi uma emoção que eu não sei descrever; tanto como oroense, por ver o açude sangrando; como trabalhando nesta parte de filmagem. Capturar isso foi uma emoção que eu não posso explicar”, compartilha.
Ele revela que seu sonho era mostrar as belezas do Orós para os que vêm de fora. Para ele, a relação entre os moradores da cidade com o açude é profunda. “É uma coisa do oroense, tá há 14 anos preso. Para mim foi uma emoção enorme e uma honra enorme de levar o nosso Orós para tudo que é canto e capturar isso, essa essência. Eu vou levar isso para o resto da vida”, conta emocionado.
Açude Orós: um oásis no sertão cearense
O Açude Orós é um dos pilares da segurança hídrica no Ceará, como explica Francisco de Assis Souza Filho, coordenador do Centro Estratégico de Excelência em Políticas de Águas e Secas (Cepas), da Universidade Federal do Ceará (UFC), e Cientista Chefe Recursos Hídricos do Governo do Ceará.
O pesquisador destaca a grande capacidade de armazenamento de água do reservatório, que totaliza 1,94 bilhão de m³, garantindo e não apenas para períodos chuvosos, mas, sobretudo, para enfrentar longas estiagens.
“Para a população significa segurança hídrica. Exatamente para os usos da água; seja um abastecimento urbano, seja o uso para irrigação, seja o uso para a indústria, tem uma sinalização de maior garantia esse processo de investimento nesses grandes reservatórios”, explica.
Construído para suplementar o Rio Jaguaribe e abastecer importantes regiões do Estado, incluindo a Capital, o Orós ainda hoje cumpre papel estratégico. “Como ele é um reservatório muito grande, significa que a gente tem maior segurança hídrica para secas mais prolongadas”, explica. A cada cheia, o açude reafirma sua relevância como símbolo de resistência diante da imprevisibilidade climática do semiárido.
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A sangria do Açude Orós em 2025, a primeira em 14 anos, reacende a importância histórica e estratégica desse reservatório para o Ceará, não apenas no aspecto técnico, mas também cultural, afetivo e econômico.
“A gente viu, de fato, muita, muita gente mesmo, tanto na parede do açude, vendo a beleza do reservatório cheio, como também nos restaurantes, balneários, eios de barco. Isso mostra sua importância não só na segurança hídrica, mas também no turismo e comércio da região”, ressalta Wellinton de Souza Ferreira, gerente regional da Bacia do Alto Jaguaribe.
A recarga total do açude também fortalece o sistema hídrico integrado, beneficiando o Castanhão e, indiretamente, a Região Metropolitana de Fortaleza. Além da função vital no abastecimento, o Orós carrega um peso simbólico para o povo cearense.
“O reservatório, pela sua grandiosidade, representa não só sustentabilidade e segurança no abastecimento. O pessoal que mora lá se sente mais seguro, porque sabe que não vai faltar água, que vai ter peixe nos rios, vai ter água para ter uma segurança até econômica (...) A gente vem saindo de uma seca dos últimos anos; nesses últimos 4, 5 anos, estamos tendo essa recuperação e traz uma segurança enorme, pois, podemos dizer que até 2030, mais ou menos, a gente tem água para atendimento”, garante.