Cannes: iraniano Jafar Panahi encara torturadores após prisão política
Perseguido pelo Governo do Irã, Panahi apresenta em Cannes ‘Um Simples Acidente’, seu primeiro filme após ser solto de prisão política
Em 2024, os últimos dias do Festival de Cannes foram tomados pela tensa expectativa sobre a presença de Mohammad Rasoulof, cineasta iraniano que estava na seleção oficial com “A Semente do Fruto Sagrado”. Isso porque ele estava proibido pelo governo iraniano de deixar o país, e a informação que circulava por aqui era de que ele estava vindo foragido, em segredo. Ele conseguiu chegar, o que rendeu uma sessão apoteótica no último dia do festival.
Dois anos antes, ele havia sido encarcerado em local desconhecido após protestar contra a violência do Estado. Nessa ocasião, esteve preso junto a outro grande cineasta iraniano, Jafar Panahi. Seu filme “Sem Ursos” havia vencido o Urso de Ouro no Festival de Berlim e ele, preso, não pode estar presente para receber.
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Os festivais europeus e uma série de produtores e cineastas fizeram barulho para sua libertação. Essa trama cinematográfica nos leva para agora, na 78ª edição de Cannes, porque Panahi esteve no tapete vermelho do Grand Theatre Lumiére para apresentar seu novo filme, desta vez liberto.
“Um Simples Acidente” – tradução livre do francês “Un simple accident” – é uma resposta direta de Panahi aos seus algozes, mas feito de um jeito irreverente e até mesmo gentil. A trama começa dentro de um carro, cenário habitual do cinema iraniano pela facilidade de se filmar em segredo, acompanhando um casal aparentemente simpático. Após atropelar um cachorro, o motorista precisa ar numa oficina e o que ele não poderia imaginar é que um dos mecânicos o reconheceria como alguém que o torturou na prisão.
Jafar Panahi e o Festival de Cannes
Esse encontro completamente casual acaba gerando uma série de desventuras quando o funcionário decide sequestrá-lo num plano vingativo que, obviamente, vai mergulhar num mar de angústia, pavor e erros. Mas quando chegar a hora de matá-lo, será mesmo que ele vai conseguir?
O mais surpreendente na forma como Panahi conduz essa história é que ele o faz com muita dose de humor. Carregando o homem desmaiado na sua kombi, o novo protagonista acaba reunindo várias outras pessoas nessa missão bagunçada enquanto roda por Teerã e vai parar no deserto.
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Embora exista uma mensagem política contundente, o cineasta também olha com sarcasmo para esse estado ditador, assim como Rasoulof também o fez ano ado ao contar a história de um delegado que se torna bobo ao descobrir que perdeu sua arma.
“Um Simples Acidente”, no entanto, acaba perdendo muito do seu equilíbrio quando vai avançando na tragédia em espiral dessas pessoas que discordam sobre a natureza da vingança. Quando recorre à insistência do mesmo texto, a trama peca pelo excesso de algo que se constrói com tanta naturalidade.
De toda forma, Jafar Panahi cumpre mais um novo capítulo dessa sua missão árdua de persistir como um artista que faz arte da sua própria perseguição. Talvez em texto esse discurso soe condescendente a um contexto “meramente político”, mas basta assistir a qualquer um de seus filmes para compreender a genialidade que há na forma como ele lida com essa criação.
Depois de mais de uma década tentando podá-lo, chega a ser engraçado o Governo do Irã ainda não ter entendido o óbvio: quanto mais arremessarem Panahi à margem, mais ele vai transformá-la num centro.
A cobertura do O POVO no 78º Festival de Cannes segue até o dia 24 de maio.